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Textos

Sobre as pinturas de Edna Canoso



Por instinto, a primeira necessidade do homem no mundo foi a sobrevivência, um embate consigo, o outro e o entorno, com tudo que o abriga. Diante de tal circunstância, uma de suas primeiras ações foi uma necessidade de organização dele, homem, e as coisas deste mundo, aprimorando sentidos e tornando-os inteligíveis.



O início destas ações deixou rastros que construíram durante o passar do tempo uma memória de nossos antepassados até os dias atuais.

Neste rastro deixado pela humanidade e a partir do século XX, temos a memória e o índice como condição de linguagem e estes elementos são o que permeiam a produção em pintura de Edna Canoso. Produção esta, pontuada por dois instantes diferentes, com proximidades e semelhanças no processo e resultado, nos mantendo assim, ciente de suas escolhas como artista, porém escolhas distintas em seu percurso.



O que é mais relevante em sua produção anterior caminhava pela e como uma metáfora da terra. Havia texturas em materiais como areia, carvão, tintas e a memória de folhas impressas através da monotipia de algumas espécies, mas sem muita pretensão em suas escolhas.

As cores escolhidas caminhavam entre as variações dos tons terras, azuis, verdes e entrava também o preto do carvão e o branco do fundo da tela sem pintura. Todo o simbolismo de alguns elementos da Terra abrigava os trabalhos, como se a artista caminhasse sobre a terra desta Terra, colhia-os e os agregasse na superfície do quadro, eles se agrupavam para dentro de suas bordas em algo como guardar tudo ali, rearranjando-os a cada trabalho.

Eram acúmulos, a memória disto tudo, algo meio ritualístico.



O processo se evidenciava, quase ganhando autonomia e quanto à obra, esta se confundia a artista, não em sua semelhança, mas nas ações viscerais que a artista manifestava, refletida no seu modo de ser e no processo técnico da construção destes trabalhos.

A pintura refletia o êxtase, a catarse de sua maneira de ser e esta condição não se espelhava pela sua representação estética, que neste caso são paisagens, ou seu indício, sua memória em restos e rastros. Suas escolhas se faziam somente pela condição de refletir seu interior, onde ao olharmos estes trabalhos, percebemos estas catarses ritualísticas.



Esta produção nos leva histórica e esteticamente ao abstracionismo lírico informal praticado por alguns artistas em meados do século passado aqui no Brasil e como a própria artista menciona, a forte influência que recebeu da obra de Renina Katz. E criando parentesco, acrescento também o passeio que se faz pela obra de Tikashi Fukushima, porém com uma carga matérica superior, bem como uma diferente organização espacial dos elementos compositivos. 



Hoje escorregou, tornaram-se literalmente indícios.


Atualmente a produção de Edna Canoso é permeada por indícios e é neste ponto que se diferencia da anterior. Há um distanciamento em um fazer como reflexão.

Na verdade a artista passou a pensar a superfície da tela como um território de descobertas e desafios e em muitos casos, a pintura como pintura, junto à autonomia dos elementos que as compõem. Elementos aparentemente soltos, que nestes trabalhos são estruturados basicamente pela idéia de desenho, tanto pelas linhas levemente depositadas na superfície compositiva, bem como aquelas que se encontram contornando ou mesmo dentro dos espaços, das manchas de tinta em algumas áreas de pintura.



Ao fazermos o mapeamento de sua superfície e sua descrição, percebemos uma linha percorrendo determinada extensão do quadro, outras linhas toda sua extensão, nos conduzindo através de suas repetições e por outras vezes, por suas semelhantes variações à um lugar entre a  figuração e a abstração. São linhas traçadas praticamente na vertical e seu espaçamento e dinâmica criam relações espaciais entre positivo e negativo.

Este espaço que se pronuncia na organização da superfície ocorre em conjunto com o desenho e muitas vezes a partir dele. Mas em algumas áreas, este lugar torna-se praticamente o lugar da cor, em uma paleta que ficou mais contida, um tom ou no máximo dois entram nos trabalhos. Uma cor que é colocada, sugerida e esta cor, sempre comedida, em suas pequenas variações cromática, é dada pela aquosidade técnica utilizada pela artista em aguadas luminosas, camadas diluídas de tinta. São transparências vibrando luminosamente junto ao fundo branco da tela.


Nesta produção há uma consciência, um saber do jogo, a artista nos deixa decidir sobre o que queremos ver, por hora nos induz à abstração ou ao reconhecimento das imagens nos induzindo à idéia de paisagens.  Será por uma relação que temos com o horizonte em suas similitudes ou por uma relação com as estruturas em seu sentido de enraizamento ou também, por uma indução à memória que temos das coisas?



Na pintura não há urgências, o tempo é do olhar. Na cultura há similitudes e memórias.



Por não serem realistas ou não se proporem ao naturalismo, muitas vezes nos induzem, sugere árvores, troncos, galhos, porém, não é isto o que se trata a produção de Edna Canoso, o que temos são estruturas verticais praticamente dispostas no primeiro plano.



Por sua instantaneidade há um olhar ligeiro, direto, condicionado pelo desenho e outro olhar mais lento, graduado pela vibração pictórica e pela memória corpórea. E na corporeidade matérica, a matéria se vai, quase não acontece e quando acontece, são indiciais, o que já é muito.

Em gestos precisos estes elementos que compõem sua pintura tornam-se muito mais uma escrita em paralelo com o Oriente. Se vinculando aos seus sistemas de escrito-estética, que neste percurso, sempre buscou um sentido de leveza através de seus deixados e que nesta produção mais recente ocorre naturalmente. 



Segundo Barthes:
Na linguagem clássica as relações arrastam a palavra e a levam imediatamente para um sentido sempre projetado; na poesia moderna as relações são apenas extensões da palavra. A Palavra é uma “morada” e está implantada como origem na prosódia das funções, contudo ausentes.

(Barthes, Roland. O grau zero da escritura e novos ensaios, tradução: Mario Laranjeira, São Paulo: Cultrix, 2004)

A pintura de Edna Canoso nos apresenta um pouco deste lugar, em sua busca com a essencialidade, um algo primeiro antes de acontecer, este que antecede e nos coloca em paralelo com o pensamento Barthiniano.  

Rubens Pontes

Artista plástico e professor    









       Troncos

 

Uma das capacidades mais ricas da arte está em abrir visões de mundo ao criador e ao observador. Ambos se encontram no momento em que existe a composição de uma atmosfera plástica em que a forma de expressar um olhar sobre o mundo supera o simples ato de reproduzir aquilo que costumamos chamar realidade.
Os troncos de Edna Canoso são justamente a concretização desse diálogo entre aquilo que se vê e o que se cria. Existe, portanto, um processo reflexivo em que se parte de uma referencia e (e) X se atinge uma outra dimensão, a da representação.

O diálogo se enriquece quando a discussão sai daquilo que a imagem mostra para o como ela foi construída.
Nesse aspecto, a força dos troncos na natureza e suas curvas plenas de lirismo, marcadas pelas mais ousadas elaborações, são o ponto de partida para um conjunto visual que se vale de diversos matérias e técnicas, para atingir uma progressiva destruição do referente que não se dá pela agressividade, mas com polidez.
O uso do nanquim, por exemplo, estabelece um universo de relações delicadas entre as linhas da natureza e as manchas tão presentes na arte oriental.

O comparecimento de texturas, tonalidades, monotipias e efeitos diversos podem contribuir para gerar um mundo de troncos que, reconhecíveis ou não, guardam a força orgânica e visceral de sua integração com o espaço.



 

 


Oscar D’Ambrosio, jornalista e mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp, integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA- Seção Brasil).

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